Amanhecerá na metade do dia

“Anoiteceu na metade do dia”. Com este lamento, que foi passado de geração em geração, é expressa a comoção pelo desarraigo causado nos povos autóctones da América. Do Norte e do Sul, do Caribe e dos foguinhos que ainda ardem nos barcos dos pescadores no Cabo da Boa Esperança. Passaram-se quinhentos anos e a globalidade também aproxima os indígenas de todas as etnias, que renovam culturas seculares, crenças e tradições que mantiveram ocultas durante tempos padecidos em períodos cósmicos.
Os conquistadores foram implacáveis em sua dominação, desarraigaram os autênticos donos das terras de suas razões para viver e não poucos sucumbiram de tristeza. Apenas alguns religiosos se interessaram pelas línguas vernáculas com o fim de evangelizá-los melhor, ou seja, de ignorar suas seculares crenças para impor-lhes outra cosmovisão, outros dogmas e outra moral estranha.
Os crioulos não souberam assimilar as riquezas indígenas e optaram por copiar as formas de poder dos europeus. Nenhum indígena chegou a desempenhar presidência alguma das inumeráveis repúblicas que se sucederam depois das independências. Nem ministério importante, nem posto de responsabilidade algum no comércio, nas finanças ou na cultura até tempos bastante recentes. As exceções não fazem mais que confirmar a regra.
“Anoiteceu na metade do dia” e, em nome da civilização eurocentrista e do mito do progresso, mantiveram submetida a população indígena, os negros importados para os trabalhos mais duros, não poucas vezes desumanos, e a crescente massa de pobres sobrevindos dos imigrantes sem fortuna. Esta é a história de um continente presidido no Norte pelo mito calvinista da predestinação para os brancos crentes; e do materialismo econômico em forma de capitalismo selvagem, que ignora os valores da vida em comunidade, da pessoa como sujeito de relações e do espaço como lugar de encontro e de convivência.
Mas uma onda de luz e de calor recorre as terras dos povos americanos. Amanhece em seus corações e sentem reviver as tradições expressas agora mediante as novas tecnologias que descobriram capazes de integrar e de fazer da globalidade um instrumento de crescimento e de autêntico desenvolvimento.
Não poucos indígenas, mestiços e mulatos freqüentam as universidades, trabalham nos meios de comunicação, navegam pela internet e assumem responsabilidades sociais e políticas cada vez com maior naturalidade e responsabilidade. Ninguém pensa em olhar para trás para ressuscitar um passado que sabem ter-se ido para sempre, mas já se atrevem a pensar, a compartilhar suas experiências e a imaginar um futuro distinto no qual caibam tradições e ensinamentos, novas culturas e experiências assumidas. Decidiram se juntar ao inimigo de séculos ao não poder vencê-lo. Compreenderam que o rancor e a ira devem abrir passagem para uma nova sociedade na qual todos possam contribuir com suas riquezas, sem ignorar nem desprezar aquelas enraizadas em milhões de seres novas que se atrevem a falar em suas línguas e a cantar suas canções, a rememorar seus ritos e a resgatar a impressionante sabedoria de seus povos conservada pelos avós.
Bendita globalidade, benditas novas técnicas, benditas estradas da informação que permitem navegar e encontrar estes vagabundos celestes que redescobriram os segredos da selva, dos rios e dos montes nos cantos dos mais velhos, transmitidos pelos músicos e pelos poetas, pelos artesãos e pelos pintores que cruzam de norte a sul, de leste a oeste, e nos centros de encontro onde os leva a imigração imposta pela nova economia.
Imigrantes procedentes de todos os povos da América se conhecem em trabalhos nas cidades européias, nas oficinas de imigração, nas esperas intermináveis e nessas novas academias do saber e da comunicação que são os lugares das horas de folga.
Algum dia será descoberto com admiração, o formidável impacto que supõe esses espaços de encontro criados em cada cidade e em cada povo da Europa e dos EUA por imigrantes procedentes da América Latina. Ali se conhecem, se cumprimentam e trocam informações sobre postos de trabalho, escolas para seus filhos, clínicas, documentação requerida e o exercício de seus direitos. Todos manuseiam telefones celulares, chamam sua gente a partir de locutórios gerenciados em boa parte por seus compatriotas, e redescobriram na aprendizagem e estudo de idiomas instrumentos valiosos para sua promoção e até para o resgate e crescimento de suas tradições ancestrais.
Estou convencido de que um novo amanhecer surge no horizonte e de que os oprimidos de ontem poderão nos dar uma mão com os envelhecidos de hoje, na imperiosa necessidade de redescobrir o gosto pela vida, o prazer do encontro e a sabedoria de compartilhar, num mundo que se tornou abarcável e no qual só cabe sermos solidários para uma sociedade mais justa e habitável.

José Carlos Gª Fajardo

Traduizido por Viviane Vaz