É questão de justiça, não de caridade

Há quatro tipos de pobres: os que não têm o que comer, nem têm cuidados sanitários imprescindíveis; os que não têm acesso à educação mais elementar; os que não sabem que são pobres; e finalmente, os que nem sabem que são pessoas. Há milhões de seres que aceitaram sua situação desumana com um fatalismo espantoso, que obedecem, e se arrastam, e padecem, porque não tem força nem para rebelar-se e exigir o que por natureza lhes corresponde.
Repetem-se os dados das Nações Unidas que denunciam que há mais de um bilhão de pobres no mundo, que um bilhão e meio não têm acesso à água potável, que a situação ultrapassou a esfera do social e se tornou desumana, na qual toda explosão terá lugar. Não estão submetidos às leis dos homens aqueles a quem não se reconhece sua dignidade e seus direitos fundamentais para participar dos bens e serviços criados pelos homens. A propriedade privada não pode ser absoluta, pois sempre estará hipotecada pelo direito à vida e ao bem-estar básico de todos os seres humanos. Os direitos fundamentais não são adquiridos como resultado do esforço, da herança ou da fortuna, mas sim são inerentes à condição humana.
Quando se infringem esses direitos fundamentais, a pobreza e a marginalização se convertem em exclusão, na “bomba social” denunciada por Boutros Gali na Cúpula de Copenhague.

Nas grandes cidades vivem muitas pessoas na rua: são os chamados “sem-lar". Estas situações se explicam pelas doenças mentais, problemas de "atendimento à comunidade", famílias rompidas, adicção às drogas ou ao álcool, dificuldades de adaptação após cumprir penas de prisão, ou imigrantes que enfrentam uma sociedade que não quer saber deles, enquanto mantém altos níveis de desemprego e de precariedade laboral. As pessoas desarraigadas formam parte do contexto mais amplo da “exclusão social”, que não pode ser reduzida à falta de moradia.
Muitos destes homens e mulheres foram rechaçados pelas instituições oficiais ou dependem delas, porque foram seus hóspedes na reclusão, no orfanato, nas prisões, nos refeitórios sociais. Em muitos casos o que menos importa é a ausência de um teto ou de uma cama, o rigor do frio ou a asfixia do calor. A mais triste das carências é a de não ter consciência de sua dignidade como pessoa, de seus direitos e de seus deveres. O aberrante é cair na apatia e no cinismo por não terem quem os queira. Por não serem reconhecidos seus direitos naturais.

Em outras épocas lhes chamamos de mendigos, indigentes, pedintes, transeuntes. São termos depreciativos que não correspondem à realidade tão diversa que se quer descrever. Hoje costuma-se utilizar o termo “pessoas sem-lar”, pelo qual se supõe uma carência comum de família, de raízes, de amizades, de amores e de qualquer fator que suponha calor humano. Mas há outras exclusões como as que todo dia, em maior número, padecem as pessoas mais idosas, os doentes crônicos ou os deficientes.
Nas sociedades rurais o problema é menos agressivo, porque se enquadra no conceito ancestral da grande família e da solidariedade. É nas grandes cidades do mundo desenvolvido onde se apresentam com toda sua crueza estas chagas que dilaceram a justiça mais elementar. A imigração sem assistência, a desestruturação familiar, o consumismo e o desperdício ilimitado, a perda de valores e de outros critérios como os dp máximo benefício, do triunfo sobre quem quer que seja e do “vale tudo” para ter, em detrimento das exigências naturais do ser.
Não bastam os curativos da beneficência nem da caridade, por mais respeitáveis que sejam, para silenciar aos que têm direito a exigir sua realização na justiça. Não são suficientes as Declarações dos Direitos Humanos e políticos se não se garante sua expressão em direitos sociais para todos. Esté o grande tema pendente na União Européia, onde há quase três milhões de pessoas reconhecidas como “excluídos”, e no resto dos países industrializados e enriquecidos do Norte sociológico. As coisas não são de seus donos, mas daqueles que as necessitam. E é legítimo tomar pela força o que não se obtém na justiça, pois o dever de resitência perante situações tirânicas se torna direito legítimo quando padecem os mais fracos. Ninguém nasceu para sofrer, nem há lugar para fantasias de futuros hipotéticos. Os paraísos não são outra coisa que a projeção no futuro do mito da idade de ouro.

José Carlos Gª Fajardo

Este artículo fue publicado en el Centro de Colaboraciones Solidarias (CCS) el 12/04/2004