O direito à felicidade    
 

Desde que os seres humanos foram dominando a natureza hostil para se servirem dela, avançaram na convivência social e entabularam relações de cooperação e de amizade com outras comunidades e com outros povos. A superação da confrontação e, através de seu modo mais desumano, o da guerra, fizeram os responsáveis das diferentes culturas e civilizações compreenderem que o progresso ia acompanhado do crescimento econômico e que, o que hoje denominamos desenvolvimento social, não estava à margem das estruturas políticas que os governavam. Daí que os mais esplêndidos períodos de criação cultural, de profundidade filosófica, de avanço nas ciências e nas técnicas correspondam a longos períodos de paz como fruto da justiça.
As grandes revoluções, que atravessam a História da humanidade em marcha, são os marcos que, como pedras angulares, sustentam as colunas fundamentais das estruturas de diferentes culturas e civilizações que como edifícios emergem, vêm abaixo e, sobre suas ruínas, voltam a construir outras edificações. Assim, a mais recente revolução industrial está na origem do domínio de alguns povos sobre outros, à escala universal, com o único critério do desenvolvimento econômico e do poder da força sobre a razão e a justiça.
Tudo isto tinha que dar lugar ao nascimento de classes sociais exploradas e marginalizadas que um dia tomaram consciência de sua condição e se ergueram como protagonistas de uma revolução de marcado caráter social, diferentemente das do passado que se apoiaram em conceitos como o grupo, a etnia, o povo, o território, o domínio das técnicas, a religião próxima ao poder, a civilização, a língua, a nação, o estado, o império ou teorias tão peregrinas e sem fundamento como a do "espaço vital" ou das "fronteiras naturais".
Quando a tecnologia transformou seus detentores e se ergueu como tecnocracia, foi consumada a trágica separação entre sabedoria, ciência e técnica com o absurdo e irracional domínio desta sobre as outras duas. Já o domínio da ciência sobre a sabedoria e as mais profundas instâncias do ser humano como a intuição, os sentimentos expressos pelas convicções que inspiravam tradições e formas religiosas, junto com o anseio de harmonia e de unidade, de eternidade e de transcendência, de justiça e de sossego, de busca pela felicidade e pela verdade - em sua forma mais excelsa concretizada no conceito de Bem Supremo ou divindade - supuseram um desarraigo tão radical e profundo que conduziu os homens e os povos a um vagar sem sentido, com a única meta da segurança a qualquer preço e a perda dos valores que expressavam sua consciência de pessoas em troca de se degradarem em indivíduos objetos de transação, de especulação ou de enfrentamentos desumanos com o único critério da utilidade. Essa idéia do bem-estar a qualquer preço levou à perda da identidade baseada nas mais profundas raízes que refletiam o rosto originário dos seres humanos como pessoas, da natureza como meio amável e capaz de nutrir, e do cosmos como parte integrante desse ser total em que vivemos, nos movemos e somos.
No último século sucederam-se as mais terríveis guerras da História da humanidade, as catástrofes em forma de agressões contra o meio-ambiente, as degradações dos seres humanos tratados como jamais haviam sido, os animais em forma de extermínio sistemático com sofrimentos inenarráveis, a erradicação da consciência e dos sentimentos, das tradições e dos sinais de identidade das pessoas e dos povos, dos valores, em suma, que ergueram a competitividade como estilo, a ânsia de bens como norma e a alienação dos sentidos como único critério de sobrevivência num mundo que se considera hostil e carente de outro sentido que o de instrumento para apagar o uivo da solidão e do isolamento que se enraizou nos seres humanos como recursos para afogar seus medos.
Com o triunfo da informática, mais do que com o poder ilimitado da energia nuclear e dos artefatos destrutivos ao serviço dos interesses das potências por meio da guerra, com a proximidade e a instantaneidade da informação sobre o que acontece em qualquer região do planeta Terra, com a agressão da mídia que nos bombardeia com imperativos publicitários ainda no mais íntimo cômodo de nossos lares, com a tirania do ter sobre a evidência co-natural do ser... As mulheres e os homens do planeta, os anciãos e as crianças, os sãos e os doentes, os pobres e ainda os que se consideram ricos em bens materiais, todos nós sobrevivemos desarraigados num ambiente de angústia. O medo é causa da expandida dor que nasce, uma vez mais, da ira produto do temor, da concupiscência dos sentidos, do apego ao desejo das coisas, da cobiça por reconhecimentos efêmeros e, definitivamente, da desorientação produzida pela perda do sentido de viver com dignidade, em harmonia com tudo o que existe, em solidariedade com todos os demais seres e com uma transcendência nascida da contemplação, da autêntica experiência (e não dos experimentos) que se adapta às leis internas do universo e nos leva à plenitude do ser e da existência que é a perfeita felicidade a que todo ser anseia ainda que sem sabê-lo.
Nunca o planeta esteve em situação tão próxima da destruição do ecossistema, da extinção de milhões de pessoas e de uma mudança de paradigma que poderia destroçar todas as conquistas da humanidade em vez de se abrir novos modelos que anteponham o social ao estatal, o humano à tirania da tecnocracia e a felicidade ao êxito de um crescimento descontrolado. No mundo em que nos cabe viver, impera a desigualdade injusta entre os Estados, entre os povos e ainda entre os seres humanos. O meio-ambiente não pode resistir por muito tempo a agressão sistemática e contínua que nos leva ao extermínio das espécies, da vida nos rios e nos mares, das florestas e da terra, com uma galopante erosão e desertificação, com situações de pobreza, de fome, de doenças infecciosas, de falta de moradia, de incultura e falta de educação básica para mais de um bilhão de pessoas, de desarraigo para dezenas de milhões de emigrantes, de trabalho desumano para milhões de crianças, de exploração de centenas de povos do Sul por dezenas de povos do Norte, de mortes atrozes por guerras nas quais o número de vítimas civis já supera com acréscimo o dos combatentes, de segregação e discriminação para centenas de milhões de seres humanos em um mundo no qual é possível remediar todas estas pragas, porque são produto da injustiça dos homens e porque o planeta é capaz de alimentar seus habitantes contanto que se atue com justiça, com sabedoria, com inteligência e com solidariedade. E com sentido comum, porque disto depende nossa vida.
Por tudo isto, corremos o indubitável risco de institucionalizar os efeitos ao silenciarmos as causas destas injustiças, destas discriminações e de tanta dor e marginalização de seres humanos com idêntico direito a uma vida digna como qualquer outra pessoa, já que somos cidadãos do mundo transformado em comunidade global e com um destino solidário.


 

José Carlos Gª Fajardo

Este artículo fue publicado en el Centro de Colaboraciones Solidarias (CCS) el 26/09/2005